Por Hesdras Souto / CPDOC
Por mais de três séculos o Brasil foi palco de um sistema socioeconômico e político que escravizou milhões de seres humanos. Fomos o país mais escravocrata das Américas. Entre os séculos XVI e XIX, recebemos quase 5 milhões de africanos para serem escravizados nos engenhos, fazendas, minas e nas casas de senhores de uma elite branca. Outros milhões de brasileiros, ao nascer, já eram escravizados, tratados como bicho, para compor os “plantéis” dos senhores e condenados a uma vida inteira de trabalho forçado e quase nunca remunerado.
A sordidez da escravidão também aportou no Pajeú das Flores, interior de Pernambuco. Apesar de o assunto ser pouco estudado em áreas sertanejas e por muitos “cidadãos de bem”, considerado um tabu, de fato, no Sertão do Pajeú, viveram sob escravidão uma expressiva quantidade de seres humanos.
Alguns documentos descobertos e de posse dos membros do Centro de Pesquisa e Documentação do Pajeú (CPDOC-Pajeú) corroboram essa afirmativa.
Uma Carta de Liberdade (ou de alforria como alguns chamavam), registrada em um Cartório na Vila São José do Egito (PE) demonstra que a escravidão foi presente no Pajeú.
O documento histórico aqui citado foi trazido à tona pelo professor, pesquisador e poeta Lindoaldo Campos, que também é um membro-fundador do CPDoc-Pajeú. O documento abaixo transcrito é de uma riqueza enorme, não somente porque comprova um capítulo abjeto da história do Brasil, mas também porque suscita muitas questões que só serão respondidas com muita dedicação à pesquisa destinada a conhecermos mais sobre nossa amada região.
Vejamos agora a tal Carta de Liberdade.
O ano era 1886. No Brasil, a nefanda instituição da escravatura dava seus últimos suspiros, os ventos da liberdade estavam prestes a sufocá-la.
No Pajeú, uma jovem mulher, com idade entre 25 e 26 anos, chamada Maria Madalena, assim como sua mãe, de nome Ana, eram tratadas como objetos, como propriedades, registradas como animais de raça. Pertenciam ao Alferes da Guarda Nacional Inácio Baptista de Oliveira, morador da Sítio Santo Inácio, pertencente à Antiga Data dos Grossos.
Entre 1861 e 1889, esse senhor chegou a ocupar os cargos de subdelegado e delegado literário do Distrito de São José, pertencente à Vila da Ingazeira e, em 1891, o cargo de 3º suplente de juiz municipal e de órfãos de São José do Egito (PE).
Em dois anos a escravidão iria acabar, mas a jovem ansiava em ser livre e não estava disposta a esperar mais. Então comprou sua alforria, pagou pela sua liberdade, já que, por força do instituto da escravidão, tinha nascido desprovida dela, assim como, provavelmente, sua mãe, e a mãe da sua mãe, e a mãe da mãe da mãe de sua mãe.
Interessante notar que em sua qualificação consta como habilidade “o serviço doméstico”, o que indica que gozava de certa confiança de seu senhor e, provavelmente, integrava a categoria de “escrava de ganho”, já que teve condições de, trabalhando para fora, acumular algum dinheiro destinado à compra de gado e de sua própria liberdade.
Sua alforria foi registrada no Cartório de Notas da então Villa de São José do Egito no ano de 1886. Abaixo, apresentamos a transcrição do documento. Procuramos ser fiéis ao português da época.
Carta de liberdade de Maria de Magdalena, filha de Anna.
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Pela presente carta de liberdade declaro eu á baixo assignado, alforriar a minha escrava Maria Magdalena, natural d’esta Província de Pernambuco, solteira, parda, de 25 a 26 annos de idade, do serviço doméstico, apresentada e matriculada no Município de Ingazeira no dia 1 de outubro de 1872, sob número 1559 de ordem na matrícula, e número 3 de ordem na relação dos escravos pertencentes a mim, como consta da relação número 18, pela quantia de 300 mil réis (300$000rs), de cuja quantia recebi 190 (190$000rs) em gado, e o resto, isto é cento e dez mil réis (110$000rs), á pagamento, ficando d’esta data em diante a dita escrava Maria Magdalena, no gozo de plena liberdade sem constrangimento nenhum de minha parte, e de pessoa nenhuma, e por ser verdade, mandei passar a presente, em que me assigno com as testemunhaz também a baixo assignadaz.
Villa de São José do Egypto , 7 de julho de 1886.
Inácio Baptista de Oliveira
Como Thestemunha Antônio Anastácio Mendes
“ “ Izidro Mendes de Almeida
“ “ Eloy Porfírio de Lima Ribeiro
Lançada no Livro 5º das Notas da Villa de São José Egypto aos 30 de agosto de 1886.
O Tabelião Interino
Napoleão Benício do Nascimento
Hesdras Souto – Sociólogo, pesquisador e membro-fundador do CPDoc- Pajeú.
Aldo Branquinho – Sociólogo, professor, pesquisador e membro-fundador do CPDoc-Pajeú
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