UM NÃO-ESTRANHO NO NINHO NA REDE
Anotações pessoais sobre o Encontro de Formação da Rede LGBT do
Interior de Pernambuco
Foram duas horas de carro de lotação até Arcoverde, mais duas horas de espera no Posto Cruzeiro, mais quatro horas de carona até o Serta, em Glória do Goitá, onde aconteceu o Encontro, dias 2, 3 e 4 deste mês de fevereiro. A programação é parte do projeto “Diversidade sexual e participação política cidadã” com apoio do Fundo Brasil.
A viagem cansativa e longa,
apesar de divertida graças aos companheiros de estrada é apenas um dos diversos
problemas que dificultam a articulação da Rede.
A comunicação em rede e da Rede, a princípio, já é um desafio: “Como vou
saber qual o carro e quem é o pessoal que me dará carona a partir de Arcoverde?” indago
receoso de ser deixado para trás e perder a viagem. “Não sei qual o carro, mas
você vai reconhecer o grupo assim que ele chegar ao Posto, pois as bichas se
denunciam”.
O que poderia soar como chacota
preconceituosa na boca de qualquer um, é apenas um pretexto bem humorado para
quebrar a apreensão. As bichas somos amavelmente cruéis umas com as outras,
facetas deste universo às vezes confuso até para quem nele se situa.
- Quem aqui está vindo pela
primeira vez?
Quase todas as pessoas na sala
levantam o braço. Há muitos jovens, na
casa dos 20 anos e alguns poucos acima dos 40 como eu, que também chego ali
pela primeira vez. A apresentação é
rápida, pois já passa das 8 da noite, alguns acabaram de chegar como é o caso da
nossa trupe e estamos exaustos. Outras
não vieram por falta de transporte ou de dinheiro para pagar as passagens.
Sandro, da coordenação, mobilizador
do encontro, entende necessário fazer um breve resumo da trajetória da Rede
desde sua configuração inicial. Depois repassa o programa do dia vindouro e da
manhã do sábado, quando se dará o encerramento. Serão horas valiosas com o
intuito de formar as lideranças, grupos e coletivos que se fortalecem em rede. Segue-se uma breve apresentação, onde oscilam os
desejos de impressionar a platéia e as disputas de holofotes. As bichas, as gays, as trans, os trans, os
pans não são páreo para amadores nem para heterocondicionados tímidos como eu,
então prossigo no meu papel de observador discreto.
Antes do sono da primeira noite
no alojamento ainda consigo algum contato com dois jovens do campo, em razão do
meu interesse de projeto de pesquisa, voltado para atuação das pessoas LGBTs
nos movimentos sociais do campo.
- Espero não me arrepender de ter
vindo. Nem queria vir
O comentário é de uma das
participantes, dito enquanto ensaia alguns movimentos de candomblé pela sala.
“Sou de terreiro mas estou afastada”. (Muitos
no encontro são do candomblé ou da umbanda, a maioria de cor branca. Os pais e
mães-de-santo acolhem e respeitam as identidades de gênero e a orientação
sexual dos seus filhos e filhas, quaisquer que sejam elas. Há também as
características de resistência e de festa das religiões de matriz africana. Não
se discute religião no encontro).
- Bicha, por que você se
arrependeria de ter vindo?
-Não sei, deixei muitos
compromissos para vir. Algumas desistiram quando souberam que o encontro seria
aqui, elas só querem se for em hotel, querem é farrear. Faltam compromisso e
seriedade do pessoal.
Decerto este tipo de encontro não
se realiza para satisfação pessoal, ou de interesses particulares, mas afinal
qual seu sentido nestes tempos de conexão permanente e troca de informações
(nem sempre elucidativas) imediatas?
Ao pensar nisso, parece-me que o
formato de Rede é o que melhor atende as necessidades de união das pessoas
identificadas na sopa de letrinha LGBTIs, pois não me foge a observação de
Zygmunt Bauman que eu lera à tarde enquanto aguardava a carona: “ ...sem dúvida
uma qualidade elogiável e conveniente numa sociedade em que as redes substituem
as estruturas, em que um jogo de apego/desapego e uma infinita sucessão de
conexões e desconexões substituem a atividade de “determinar” e “fixar”...”.
Bauman não escreveu um elogio, é importante que se destaque.
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Campo da Sementeira- Serta, local do Encontro |
Manhã
As contradições se apresentam no
decorrer do dia, com a apresentação da Política Estadual de Saúde para a
População LGBT. Não se consegue decidir se é adequado um elogio ou uma crítica
ao governo Paulo Câmara e sua (des)atenção à causa LGBTIs. Houve avanços ou
retrocessos? Andamos ou estagnamos?
Aplaudimos ou lamentamos?
Há uma babel de palavras e
expressões corporais que se acomodam, enfim, na foto do encerramento da manhã
com a bandeira do arco-íris e a imagem que estará em instantes nas redes
sociais nos mostrando sorridentes, confiantes e unid@s. Porque este é o tempo que nos toca vivenciar
e ele só é validado através da fotografia, não importa se verdadeira.
Tarde
As bichas são antenadas e
inteligentes, posto isso não encontro uma resposta lógica para que se ocupe uma
tarde com palestra sobre como formalizar grupos e associações. As mais metidas dirigem e dominam a fala do
palestrante, impacientes ou habituadas a roubar cena ao menor vacilo dos protagonistas.
Formalizar empodera? A burocracia
assombra qualquer resposta a respeito.
É a tarde-confusa, por se querer orientar
sobre aquilo que a própria natureza da Rede contradiz. Grupos se desfazem,
conquistas formais pró-LGBT em alguns municípios, a exemplo de Belém de São
Francisco, se desmancham ao sopro do menor desinteresse de gestores públicos
conservadores ou imbecis. A inconstância
e a fragilidade (ou liquidez, para se valer de Bauman novamente) é o que move a
sociedade do presente e essa percepção, vejam que surpreendente: não é consenso
na Rede!
Quase noite
Em favor da noite de lazer na
cidade de Glória – afinal ninguém é de ferro – antecipa-se a palestra de Gilmar
Dias sobre o Ciclo Orçamentário. Estamos em ano de PPA, é preciso conhecer como
funciona a construção do orçamento público para facilitar a intermediação junto
aos gestores públicos e garantir políticas e ações para fortalecimento de
direitos das minorias. Empoderadas e
empoderados, que venha a noite de lazer e paquera na cidade, glória!
Sábado
Mudanças na equipe de governo –
da representação do segmento LGBTIs - e orientações sobre projetos para
captação de recursos e Advocacy, com Rildo Véras, são os temas dominantes da
manhã.
Despedimos-nos sem esperar o
encerramento e tomamos a estrada, o sertão é longe.
Antes, assinamos em conjunto a
Carta de Apoio às Políticas de LGBT do Município de Belém do São Francisco,
ameaçadas pela nova gestão da prefeitura.
Os próximos compromissos da Rede também ficam
acertados: Encontros regionais com gestores públicos sobre a política de saúde
para a população LGBTIs, necessidade de formação dos profissionais das áreas de
saúde e assistência social e outras pautas de fortalecimento da luta. No sertão
o encontro será dia 14 de abril, em Salgueiro. Zona da mata e agreste estarão
reunidas em Glória do Goitá novamente, no dia 27 de abril.
O desafio maior será convencer os
gestores a comparecerem. Pensando nisso,
lembro do comentário da nova amiga e indago:
- E aí, valeu a pena ter vindo?
Mentalmente listo pontos que considero
positivos: contato com novas pessoas, fortalecimento de vínculos, argumentos
para solidariedade...
- Sim, decerto valeu. Não sou de arrepender-me de nada do que faço.
Pelo menos saí de casa e descansei esses dois dias fora da minha rotina.
Não é o que eu esperava ouvir,
mas não posso julgar seu argumento. Afinal nós queremos ouvir a verdade de cada
um ou queremos ouvir (apenas) aquilo que supomos ideal?