Por Tárcio Oliveira
“Seu Rei mandou...” era uma das
dezenas de brincadeiras de rua que a gente fazia para passar o tempo na
infância vivida em Tuparetama. Quem
ganhava a vez de rei desafiava a coragem da turma com mandados nem sempre seguros,
tipo subir no pé de algaroba o mais alto que conseguisse e em seguida pular no
chão. Outros mandados eram nada inocentes, como abraçar uma moça que estivesse
passando ali por perto naquele momento. Imagina, moleques suados, sem banho...
coitadas das moças.
Lá se vão mais de 30 anos de um tempo
totalmente diferente da realidade das crianças de hoje. Não havia tv nem sombra
das tecnologias recentes como celular, internet, jogos eletrônicos..., foi uma época sem
dinheiro, sem luxos, sem equipamentos de lazer.
O lugar de brincar era a rua, o sítio ou o quintal de casa. Não havia
clube nem ginásio nem quadra nem lan-house.
Tínhamos mais, muito mais que as
crianças de hoje, tínhamos ‘o mundo inteiro’ ao nosso redor e muita imaginação.
Não digo com isso que era uma infância
melhor ou pior que a atual, nem que era mais ou menos privilegiada. Digo que
era diferente. Em tudo. Mais saudável, certamente. Não havia desculpas para
sedentarismo nem para brincadeira ‘segura’.
Todos da minha geração tinham ou
tiveram antes de entrar na adolescência algum osso quebrado (braço, dedo,
perna, clavícula, costela) dente quebrado, joelho ralado, dedo esfolado... tudo 'coisa corriqueira' que a gente estancava
o sangue com areia e cuspe e escondia do pai e da mãe o máximo possível para
evitar umas boas lapadas. E rezava para não ser nada sério nem precisar tomar
uma injeção com Seu Pretinho da Farmácia, o maior terror de 10 entre 10
crianças do meu tempo.
Um lugar onde não estávamos a
salvo dos machucados era na escola, território de invenções emocionantes como
a brincadeira do “recanto” em que uma pessoa ao centro tentava ocupar um dos 4 pontos
do quadrado ou seu redor, ao mesmo tempo em que essas pessoas tinham que mudar
de lugar rapidamente e nesse momento podiam ser enganadas ou empurradas dando
com a cara no chão, literalmente.
Ao chão também a gente ia,
principalmente os menores e mais fracos, com a tal “queda de cebola” que
consistia num ataque em dupla, com um se colocando de quatro às nossas costas
sem que percebêssemos e outro se aproximando pela frente e nos empurrando com força
sem que tivéssemos tempo de reagir. Quedas espetaculares e doloridas.
Nesse tempo ninguém sabia o que
era bullying. Não se conhecia a palavra mas todos tinham apelido e todos
zombavam e eram zombados por conta dos seus atributos físicos: alto, baixo,
gordo, magro, feio, míope, galego, preto, gago, gasguito... não tivemos uma
infância politicamente correta. Não mesmo. Principalmente quando chegava circo
na cidade, para nós o melhor momento do ano e mais uma oportunidade de
bullying: “Hoje tem espetáculo?” “Tem
sim senhor” “E o palhaço o que é?” “Ladrão de mulher” “Olha a negra no portão” “Com
a cara de barrão”.... !
A divulgação do circo era feita a
pé pelas ruas da cidade, o palhaço na frente gritando refrões e a gente – a molecada-
atrás, respondendo, para garantir a entrada gratuita à noite. A senha era uma
letra ou um carimbo no braço depois da caminhada de divulgação e quem não
gostava de banho - quase todos- tinha mais uma justificativa para não tomá-lo
naquele dia. Era só chegar em casa, lavar os pés e o rosto numa bacia com água,
passar o pente no cabelo e correr para garantir um bom lugar na arquibancada. No outro dia, na escola, a professora não
conseguia dar aula porque todos queriam imitar os trejeitos, a vozes e as caras
dos palhaços, contar as piadas e pensar num jeito de conseguir a entrada no
circo à noite novamente.
Pensar no meu tempo de criança é também
rememorar cheiros e sabores, desses que não voltarão jamais e existem apenas
guardados com carinho na memória e no coração.
Tinha a merenda de Dona Maria, pra
mim as melhores eram a papa (mingau) grossa, sabor de côco, e a farofa com
charque. Tinha o cheiro da rapadura derretida para o alfenim de Dona Joaninha
Bante, que vendia lanches em frente à escola. Quando a gente tinha dinheiro, o que era
raro, podia comprar o alfenim ou aquela fatia de pão com doce de leite. Além de
Dona Joaninha próxima à Escola Paroquial, na esquina da rua da Matriz, estava a bodega de Seu Albertino, um
descendente de italiano ou de português, não sei ao certo, branco, alto,
ranzinza. Era a bodega onde a gente
gastava as moedas com brebotes: guaravina, crush, bolacha mata-fome, chiclete e
balas, que a gente chamava de “confeitos” e não de balas.
Com o calor e com o tempo algumas
balas ficavam úmidas, meio derretidas. A gente ia devolver enfrentando a birra
de Seu Albertino, para não perder nossos centavos valiosos: “Seu Albertino a
gente não quer esse confeito não, tá mole, foi lambido. Deve ter sido Nina que
chupou e depois botou de volta pra vender” Nina era a filha de Seu Albertino
que nas horas livres ajudava o pai na bodega.
Ah... e tinha nosso “lanche”
preferido, porque era barato e demorava na boca, o pirulito Zorro. A gente não mastigava,
ia lambendo devagar, pra render mais. Sobretudo havia
naquele tempo, de modo soberano e onipresente, no período da safra, o cheiro de
goiaba por toda a pequena cidade, vindo da fábrica de polpas. Ainda agora,
enquanto escrevo, encho a boca de saliva e os olhos de saudade.