12.10.16

CRÔNICA - NO MEU TEMPO DE CRIANÇA EM TUPARETAMA


Por Tárcio Oliveira

“Seu Rei mandou...” era uma das dezenas de brincadeiras de rua que a gente fazia para passar o tempo na infância vivida em Tuparetama.  Quem ganhava a vez de rei desafiava a coragem da turma com mandados nem sempre seguros, tipo subir no pé de algaroba o mais alto que conseguisse e em seguida pular no chão. Outros mandados eram nada inocentes, como abraçar uma moça que estivesse passando ali por perto naquele momento. Imagina, moleques suados, sem banho... coitadas das moças. 

Lá se vão mais de 30 anos de um tempo totalmente diferente da realidade das crianças de hoje. Não havia tv nem sombra das tecnologias recentes como celular, internet, jogos eletrônicos...,  foi uma época sem dinheiro, sem luxos, sem equipamentos de lazer.  O lugar de brincar era a rua, o sítio ou o quintal de casa. Não havia clube nem ginásio nem quadra nem lan-house.

Tínhamos mais, muito mais que as crianças de hoje, tínhamos ‘o mundo inteiro’ ao nosso redor e muita imaginação.  Não digo com isso que era uma infância melhor ou pior que a atual, nem que era mais ou menos privilegiada. Digo que era diferente. Em tudo. Mais saudável, certamente. Não havia desculpas para sedentarismo nem para brincadeira ‘segura’.

Todos da minha geração tinham ou tiveram antes de entrar na adolescência algum osso quebrado (braço, dedo, perna, clavícula, costela) dente quebrado, joelho ralado, dedo esfolado...  tudo 'coisa corriqueira' que a gente estancava o sangue com areia e cuspe e escondia do pai e da mãe o máximo possível para evitar umas boas lapadas. E rezava para não ser nada sério nem precisar tomar uma injeção com Seu Pretinho da Farmácia, o maior terror de 10 entre 10 crianças do meu tempo.  

Um lugar onde não estávamos a salvo dos machucados era na escola, território de invenções emocionantes como a brincadeira do “recanto” em que uma pessoa ao centro tentava ocupar um dos 4 pontos do quadrado ou seu redor, ao mesmo tempo em que essas pessoas tinham que mudar de lugar rapidamente e nesse momento podiam ser enganadas ou empurradas dando com a cara no chão, literalmente. 

Ao chão também a gente ia, principalmente os menores e mais fracos, com a tal “queda de cebola” que consistia num ataque em dupla, com um se colocando de quatro às nossas costas sem que percebêssemos e outro se aproximando pela frente e nos empurrando com força sem que tivéssemos tempo de reagir. Quedas espetaculares e doloridas. 

Nesse tempo ninguém sabia o que era bullying. Não se conhecia a palavra mas todos tinham apelido e todos zombavam e eram zombados por conta dos seus atributos físicos: alto, baixo, gordo, magro, feio, míope, galego, preto, gago, gasguito... não tivemos uma infância politicamente correta. Não mesmo. Principalmente quando chegava circo na cidade, para nós o melhor momento do ano e mais uma oportunidade de bullying:  “Hoje tem espetáculo?” “Tem sim senhor” “E o palhaço o que é?” “Ladrão de mulher” “Olha a negra no portão” “Com a cara de barrão”.... !

A divulgação do circo era feita a pé pelas ruas da cidade, o palhaço na frente gritando refrões e a gente – a molecada- atrás, respondendo, para garantir a entrada gratuita à noite. A senha era uma letra ou um carimbo no braço depois da caminhada de divulgação e quem não gostava de banho - quase todos-  tinha mais uma justificativa para não tomá-lo naquele dia. Era só chegar em casa, lavar os pés e o rosto numa bacia com água, passar o pente no cabelo e correr para garantir um bom lugar na arquibancada.  No outro dia, na escola, a professora não conseguia dar aula porque todos queriam imitar os trejeitos, a vozes e as caras dos palhaços, contar as piadas e pensar num jeito de conseguir a entrada no circo à noite novamente.

Pensar no meu tempo de criança é também rememorar cheiros e sabores, desses que não voltarão jamais e existem apenas guardados com carinho na memória e no coração.

Tinha a merenda de Dona Maria, pra mim as melhores eram a papa (mingau) grossa, sabor de côco, e a farofa com charque. Tinha o cheiro da rapadura derretida para o alfenim de Dona Joaninha Bante, que vendia lanches em frente à escola.  Quando a gente tinha dinheiro, o que era raro, podia comprar o alfenim ou aquela fatia de pão com doce de leite. Além de Dona Joaninha próxima à Escola Paroquial, na esquina da rua da Matriz, estava a bodega de Seu Albertino, um descendente de italiano ou de português, não sei ao certo, branco, alto, ranzinza.  Era a bodega onde a gente gastava as moedas com brebotes: guaravina, crush, bolacha mata-fome, chiclete e balas, que a gente chamava de “confeitos” e não de balas. 

Com o calor e com o tempo algumas balas ficavam úmidas, meio derretidas. A gente ia devolver enfrentando a birra de Seu Albertino, para não perder nossos centavos valiosos: “Seu Albertino a gente não quer esse confeito não, tá mole, foi lambido. Deve ter sido Nina que chupou e depois botou de volta pra vender” Nina era a filha de Seu Albertino que nas horas livres ajudava o pai na bodega.

Ah... e tinha nosso “lanche” preferido, porque era barato e demorava na boca, o pirulito Zorro. A gente não mastigava, ia lambendo devagar, pra render mais. Sobretudo havia naquele tempo, de modo soberano e onipresente, no período da safra, o cheiro de goiaba por toda a pequena cidade, vindo da fábrica de polpas. Ainda agora, enquanto escrevo, encho a boca de saliva e os olhos de saudade.


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